“Daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. A
frase crística parece tratar Deus e César como se fossem entidades diferentes.
Isso também nos dá a ideia de que a vida material e a vida espiritual são
coisas distintas, podendo ser consideradas como nada tendo em comum.
Ora, sabemos bem que tratar a vida material como algo
separado da espiritual gera um engano. Em cada ato que realizamos neste mundo,
o agente por trás é o espírito – nossa real natureza – e a consequência última
desse ato é produzir efeitos no nível da consciência, ou seja, no campo do
espírito. Para isso estamos aqui. Então, como separar uma coisa da outra?
“Luz no Caminho”, obra assinada por Mabel Collins, fala
sobre o contexto paradoxal da relação entre os aspectos materiais e espirituais
da vida. Apesar de estarem separados, são uma coisa só. Apesar de serem uma
coisa só, estão separados. O paradoxo é uma contradição e a contradição propõe
um desafio de natureza insolúvel para o intelecto, que se baseia no processo
linear, na lógica matemática. Esses são os domínios do mental concreto,
discriminativo, a parte de nossa natureza mental voltada para as necessidades
do corpo, da sobrevivência física.
O rigor dessa concretude – baseada nas exigências do teto,
do agasalho, da comida –, nos torna rudes também no trato com as pessoas, vendo
no rosto de cada uma delas um potencial adversário aos nossos interesses, à
nossa sobrevivência.
O fato é que todas essas pessoas estão vivendo o mesmo
dilema que nós, o mesmo desafio. O resultado é estarmos lutando indefinidamente
uns com os outros. As guerras entre países refletem nossas guerras com o
vizinho e também nossa própria guerra interior: a relação do espírito com a matéria.
Entretanto, ansiamos por paz.
É necessário, então, que resolvamos esse conflito dialético.
Há contradição entre os propósitos do espírito e da matéria? Se há, então,
haveria um erro na concepção do universo, na estrutura fundamental da vida?
A experiência tem nos mostrado uma das maravilhas do
raciocínio dedutivo: aquele que parte do todo para chegar ao particular. Nesse
sentido, o que significa a relação entre o espírito e a matéria para o dia a
dia? Trata-se de uma relação de aprendizado, de expansão da consciência, o que
significa o espírito expandir seu domínio sobre a matéria, compreendendo suas
leis. Esse domínio, portanto, não ocorre pelo uso da força, como pode nos
parecer o uso da vontade espiritual – que é a ferramenta essencial em nossos
processos de autossuperação.
Em lugar de imposto, esse domínio é antes um processo de
conquista, de gentileza. A matéria (algumas vezes chamada de “espírito
congelado”) tem como finalidade primordial atender aos propósitos da natureza,
gerando corpos para que a consciência – o espírito – possa se manifestar em
todos os recantos do universo (no que reside o mistério da “Santíssima
Trindade”).
Devemos lembrar que, de fato, a consciência já está presente
em todos os cantos. É a natureza íntima da menor partícula de matéria. Porém,
no que tange ao ser humano – predestinado à evolução espiritual diante dos
demais reinos – essa presença ainda é incipiente, à semelhança, do que acontece
na comparação da criança com o adulto, num exemplo bem rudimentar. Além da
condição puramente humana, a expansão da consciência não tem limites.
Para fazer seu trabalho – aquilo que se espera dela no
universo – a matéria é “egoísta” em si mesma. Não faz concessões. Na defesa
desses propósitos, ela possui uma força tremenda, derrotando nossos melhores
esforços quando exercidos num simples confronto, sem sabedoria. Isso, em si, já
significa um paradoxo, pois dá a entender que a matéria é inimiga do espírito –
daí advindo também a noção errônea de uma entidade demoníaca adversária de
Deus.
Da mesma forma que age a matéria na defesa de seus
propósitos, agimos nós quando identificados com o corpo físico gerado por ela.
Só vemos esse corpo, só nos preocupamos com sua sobrevivência, em lugar de
lembrar seu significado para o crescimento da consciência, para o desvelamento
do espírito. Ir além desse corpo, entretanto, não é tarefa muito fácil.
Trata-se da autossuperação de que falamos atrás. Isso, literalmente, significa
cada um “superar a si mesmo”. Como posso superar a mim mesmo? Quem vai superar
quem?
Ora, o que acontece quando nos identificamos com o corpo?
Automaticamente geramos, no nível do mental concreto, uma entidade denominada
“eu inferior”. Para Ramana Maharshi é o “falso eu”. Na teoria psicanalítica é
chamado de “ego”. O resultado é que esse falso eu acaba se tornando nosso eu
verdadeiro, ocupando o lugar do espírito – ou seja, da clareza de consciência
no dia a dia. Assim, todas as calamidades sociais que o mundo conheceu, em
todos os tempos – incluindo hoje a poluição do planeta e o flagelo da fome
sobre bilhões de indivíduos – têm sua origem nessa nossa identificação enganosa
com os domínios de César, que só pensa em si.
Devemos dar ao corpo o que for necessário para seu uso como
veículo do espírito. Mas, ao confundir esse veículo com seu condutor, acabamos
“colocando o carro adiante dos bois”, invertendo os papéis dessas duas
entidades – espírito e matéria – no processo evolutivo, retardando nosso
avanço. Isso significa aprisionamento nos labirintos da inconsciência, no jogo
reativo provocado pelos hábitos, reivindicando sobrevivência para o corpo,
segurança para o ego. Como desfazer esse engano? Como solucionar esse tremendo
paradoxo de carregar dois “eus” em conflito dentro de nós?
No Bhagavad-Gita – o “Canto do Senhor” – esse confronto é
relatado no dilema de Arjuna, chamado a lutar contra seus próprios parentes
(todos os amores do ego), na defesa de seu clã (o espírito), cujo poder foi
usurpado. Voluntariamente o ego não abrirá mão desse poder. Então, uma luta se
faz necessária, uma batalha se torna iminente. De que maneira combater?
Referindo-se à epopéia do Bhagavad-Gita, “Luz no Caminho”
recomenda: 1) “Mantém-te alheio à batalha que começa e, ainda que combatas, não
sejas o guerreiro; 2) “Procura o guerreiro e deixa-o combater em ti”; 3)
“Recebe as suas ordens para a batalha, e obedece-as”.
Como podemos nos manter alheios à batalha e, ainda assim,
combater? “Ainda que combatas, não sejas o guerreiro”. Isso significa não nos
envolvermos no combate (se nos envolvermos, o ego domina). Ficar alheio é estar
como um observador na situação, sem julgar, deixando que nossa natureza
espiritual (o Eu real) assuma a direção. “Recebe as suas ordens para batalha, e
obedece-as”. Em síntese seria agir buscando as ordens nas fibras mais íntimas
de nosso coração, não nos entregando à reatividade provocada pelo medo, pelo
anseio de sobrevivência.
A única possibilidade de soltar os amores do ego é colocar à
disposição do espírito o potencial de atenção e empenho com que hoje servimos a
matéria, não olvidando, porém, na justa medida, as obrigações que assumimos, inclusive
carmicamente. Caso contrário, essa conta aumenta.
Enquanto estivermos agarrados ao que é efêmero, não
poderemos desfrutar os valores do que é eterno. E a força de que dispomos para
fazer essa mudança é apenas a vontade espiritual, desenvolvendo-a,
paradoxalmente, nos domínios da matéria. Cada pequena fraqueza vencida em nós é
um passo a mais nessa direção. Assim se explicam todos os paradoxos da
existência humana: à própria treva cabe a incumbência de gestar a luz. O reino
do mundo – sabiamente vivido – é a antessala do reino dos Céus.
Obrigada! Muito bom o artigo. Esclareceu-me muito...
ResponderExcluirMuito verdadeiro, precisamos nos desapegar do finito para conhecer o infinito. :)
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